segunda-feira, 23 de julho de 2012

Bienal - colonialismo cultural - zeca




O ZECA VÊ A BIENAL (A BELONA)
PELA PRIMEIRA VEZ


Vou te contar, mano, o que o pintor Zeca da Mariana me falou ainda outro dia, aqui em Guaratiba. 
Ele disse: "Faz tempo, bastantinho mesmo, a gente – eu mais o Pedreira – passava pela Paulista quando vi, pela primeira vez, no Trianon, a Bienal Internacional de São Paulo. 

Nominho muito do pomposo, importante e caprichado da morena jambo, atraente e sinuosa que ali morava. 
Morenaça de vestidinho justo, meias de seda, sapato bico fino, peitinhos duros, cabelos alisados, lábios aromados de madrugada, mãozinhas nervosas e anelão de lata. Um tesãozinho. 
Não demorou um cisco de tempo, falei com ela, disse:

- Prima, quero saber de tu quem é tu.

A danadinha, toda veludo, me respondeu num inglês bacana:

- Amizade, se tu quer me namorar, me namore, senão te almoço com torresmo.

Namorei ela não, fingi que tava olhando um jacu beber água e me mandei. Perdi ela de vista, vez ou outra lia o nominho dela no jornal, retrato dela na revista, sempre belona. Um dia topei ela no Ibirapuera, morena atraente e sinuosa, vestido de casimira inglesa, casaco de peles, jóias muitas. 

Continuava amasiada com o fazedor de lata. O fazedor convidava os artistas, namorados dela, prá comer faisão com champanha, coisa muito do fino, na casa dele. Os artistas comiam aquela faisonisse toda, perdidos cada vez mais na beleza e nas sacanagens da Bienal, a belona. Eu sempre assuntando. Cada vez que topava com ela, perguntava prá ela:

- Prima, quero saber de tu quem é tu.

E ela, belona, negaceava, faceirava e falando no idioma inglês, no idioma francês, no idioma italiano, no idioma alemão:

- Amizade, se tu quer me namorar, me namore, senão te janto com melancia.




Namorei ela não, fingi que tava tocaiando paca e perna prá que te quero. E ela no Ibirapuera sempre belona, ruiva vulcânica e sinuosa de coxas grossas, falando bastantinho, fala sempre macia em idioma estrangeiro que fala em brasileiro, diz ela, é linguagem de senzala, coisa pouca e sem valia (êta ferro, me segura senão te enterro). 

Certa feita, olhe só, encontrei a belona distraída, de pilequinho, pezinhos no chão, sozinha. Perto dela o bando de namorados boquiabertos diante de uma tela que não existia, com uma pintura que não foi pintada. Um crítico perorava sobra a obra. O crítico dizia: 

"É claro que, em última instância, tudo envolve O homem e a vida, talvez o mais completo e metafísico abstracionismo, a mais total desmaterialidade e conceitualismo da arte matemática, os maiores aleamentos da tecnologia, a arte de pura informação epistemológica" e os cambaus. (êta ferro, me segura senão te enterro). 

Ela estava pela primeira vez sozinha, a belona, loira sinuosa, coletadora de corações. Estava só, de porre, olhando o nada. Eu me cheguei meio que serpenteando e disse:

- Prima, quero saber de tu quem é tu, minha santinha.

Estava a belona numa crise de suburbanice, coisa de um piscar de olhos, tempinho certo, porém, prá me responder em brasileiro num murmúrio sincopado, quase silêncio:
 
- Amizade, vou te dar a chave da Grande Porta. Exe, a coisa é a seguinte: a Arte é internacional. Compra revista estrangeira e copia as novidades, copia a grande arte da moda. Deixa de lado a pintura de coisas nossas que isso é bosta. E, por último, amizade, cultiva a antiga e nobre arte de puxar o saco, coisa também de importância muita. 

Terminou de falar, se recompôs a belona. Calçou os sapatos, deu um gole na taça de cristal quando viu um nisei do Bixiga olhando fascinado prôs peitos dela. Arrancou um pau de cerca e, pléfete, deu uma paulada na moleira do distraído. Puta cacetada! 
O curioso caiu duro, colado ao chão, deixando espalhados os quadros que trazia. Eram pinturas feitas por ele do casario do bairro, de gente colhendo milho no sitio do tio, o retrato da avó na tinturaria da Liberdade. Tudo pintado de beleza muita. 

Os quadros assim largados foram se juntando, entortando, virando chapa grossa, se enroscando até chegar a uma escultura imensa de aço inox e cristal, batizada no ato de "Annotation 1- Vert", com placa indicativa, registro no catálogo e foto nas revistas (êta ferro, me segura senão te enterro).

 O artista, esse, só acordou três meses depois, gamadão que só vendo na Bienal, pintando igualzinho a arte da moda, ganhando de imediato prêmios da melhor nomeada e representando o Brasil nas mostras internacionais na Europa, Ásia e América do Norte, tal qual ao bando que segue ela, a belona, de déu em déu. 
São os fazedor-da-arte-que-fala-idioma-estrangeiro, artistas vanguardeiros internacionais, muito possantes. 

A Bienal, sempre lampeira, continua atenta campeando sem descanso os artistas distraídos nas graças dela êta ferro, me segura senão te enterro).

 Às vezes, quebrando a monotonia algum namoradinho cochicha um nadinha dela, coisinha pouca, arrufo de enciumado. Ela loguinho conserta tudo, ronronando felina, linguinha no ouvido, reservando um espaço maior em seu coração prô resmungador. 

Assim, a Bienal, loiraça blonde, olhos azuis, continua a brilhar, faceira e sinuosa nos salões de nossa melhor dinastia. “Um tesão.”   

Setembro de 1988 - Luiz Ventura                                    


"E é muito importante que se compreenda claramente que a arte não é luxo nem adorno. A história mostra-nos que o homem paleolítico pintou as paredes das cavernas antes de saber cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver”.                                                Sophia de M.B.Andersen
____________________________________________________________________________
Pintura de Luiz Ventura
Título: O Zeca vê a Bienal (a Belona) pela primeira vez.
Data: 1989
Técnica: pintura com tinta acrílica sobre lona montada em chassis
Dimensões: 1,15x1,20m     


---- o0o ----

Este texto deu origem ao esquete: 
A Bienal de São Paulo em três tempos, 
24 páginas A4, corpo 10.

INFORMAÇÕES ABAIXO - 
Tendo interesse, acesse: 


A BIENAL DE SÃO PAULO
EM TRÊS TEMPOS
esquete sobre colonialismo cultural -  LUIZ VENTURA




Comecei a escrever este esquete quando redigia o texto ARTE e arte. 

O fiz por constatar que a forma teatral burlesca reproduzia, com a maior fidelidade, a tragicômica comédia vivida pelas artes plásticas nesta ultimas seis décadas. 
Comédia encenada com o objetivo de escamotear o velho travestido colonialismo cultural. 

Os interessados em manter esse anômalo estado de coisas procuram desqualificar aqueles que denunciam ou inquirem sobre essa anomalia,  alegando tratar-se de questão obsoleta, levantada por pessoas de idéias anacrônicas.

Obsoleto e/ou anacrônico vamos à luta, a favor da Arte como expressão cultural.


ALGUMAS DAS QUESTÕES
TRATADAS NESTE ESQUETE


1 - A interferência política nas artes plásticas.

2 - A artes plásticas como mera mercadoria e entretimento. 


3 - Uma central controla os destinos das artes plásticas no mundo.


4 – Compara as “geniais” teses sobre artes plásticas às teses teológicas que discutiam o sexo dos anjos. 


5 - Classifica a arte formal como arte decorativa, um dos ramos das artes aplicadas.



ALGUMAS PERGUNTAS NÃO RESPONDIDAS
NESTE ESQUETE


6 – Considerar como arte tudo o que se chamar de arte é prova de genialidade, perspicácia, ignorância ou pura ingenuidade?

7 - Qual deles é mais artístico: o retrato da Marilyn feito pelo Warhol ou uma das latas de cocô do Piero? São a mesma bosta? Qual o mais cotado no mercado de arte?


8 - A que velocidade o atual sistema conduz, em andor de luxo, o artista plástico rumo à alienação e ao emburrecimento?


9 - O pinico exposto pelo Duchamp é de louça ou de ferro esmaltado? Foi concebido para o uso exclusivo do David de Michelangelo?


10 – É possível calcular quando os nossos doutos dirigentes culturais passarão a levar as artes plásticas  a sério?


Luiz Ventura,
Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2010



--- o0o ----

luizventura@ube.org.br
luizventura30@gmail.com
site oficial: http://www.art-bonobo.com/luizventura/